De ladrão de banco a chefe de facção: A ascensão e queda de Zé de Lessa, a mente por trás do Bonde do Maluco
- Vandinho
- há 7 horas
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Nas trilhas poeirentas da caatinga baiana, entre mandacarus e aroeiras que desafiam a secura do sertão, nasceu o homem que viria a liderar a facção mais temida da Bahia.
José Francisco Lumes, o Zé de Lessa, brotou do pequeno povoado de Recife, em Cafarnaum, município com pouco mais de 2 mil habitantes.
Era uma terra silenciosa, silenciosa demais para imaginar que ali surgiria um dos maiores criminosos da história do estado.
A origem de seu apelido remonta às tradições do interior: possivelmente herdado do pai, Idalécio, conhecido como “Lessa”. E foi como Zé de Lessa que ele se tornou um nome sussurrado com temor nos corredores do sistema penal, nos becos das favelas e nas salas da polícia judiciária.
Ninguém sabe dizer com precisão quando ele cruzou a linha da legalidade, mas há quem diga que tudo começou com roubos a banco. Em 2015, o delegado Jorge Figueiredo o classificava como o maior assaltante de bancos e carros-fortes da Bahia.
Já em 2018, os cinco processos encontrados em seu nome estavam relacionados ao tráfico de drogas, e descreviam uma quadrilha de “extrema periculosidade”.
“É um cara bem tranquilo de conversa, não demonstra ser uma pessoa violenta. É bem articulado… quem bota as armas na Bahia hoje é ele”, informou uma fonte policial à época. Segundo a investigação, as armas vinham do Paraguai, escondidas em caminhões de carga.
Mas o rosto do crime nem sempre se confunde com o estereótipo da brutalidade. Para quem o conheceu, Zé de Lessa era educado, discreto, falava baixo.
Sua imagem destoava do império criminoso que erguera: o Bonde do Maluco (BDM), facção nascida sob sua liderança, considerada a mais truculenta do estado. Suas operações alcançavam o tráfico internacional, assaltos cinematográficos e sequestros meticulosos.
A história do Bonde do Maluco começa antes de Zé de Lessa assumir o controle. Em 2015, a facção Caveira, um dos grupos mais violentos da capital baiana, decidiu criar um braço externo com o objetivo de ampliar sua influência em Salvador e na Região Metropolitana. Batizaram esse braço de BDM.
A meta era clara: tomar áreas estratégicas como o Subúrbio Ferroviário e Cajazeiras. No entanto, o projeto sofreu um racha interno de causas ainda obscuras. Foi o suficiente para que o Bonde do Maluco deixasse de ser satélite da Caveira e ganhasse vida própria, sob a batuta de Zé de Lessa, já então um assaltante com conexões fora da Bahia.
Com Lessa, o BDM deixou de ser uma fração local e passou a se profissionalizar. Foi ele quem abriu caminho para o alinhamento direto com o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo. O que antes era apenas uma troca comercial com a Caveira, virou aliança estratégica entre o BDM e os paulistas.
A partir de 2018, o pacto passou a ser monitorado pelas forças de segurança: armas pesadas (fuzis, explosivos, munição) começaram a circular com mais intensidade. Com apoio financeiro, logística e know-how, o Bonde do Maluco cresceu em ritmo acelerado, avançando sobre bairros, comunidades e até sobre facções inteiras.
A ascensão do BDM coincidiu com o declínio da própria Caveira, sua criadora. A estrutura antiga foi sendo engolida pelo grupo dissidente e também sofreu ataques de rivais históricos, como o Comando da Paz (CP), que por sua vez foi absorvido pelo Comando Vermelho. Era o reflexo da nova ordem do crime baiano, cada vez mais conectado com o eixo Rio–São Paulo.
Enquanto isso, Zé de Lessa seguia acumulando poder — e processos. Preso em 2001 por tráfico, percorreu as prisões da Região Metropolitana de Salvador como quem muda de endereço.
Teve progressão de pena para o semiaberto em 2005, mas fugiu. Foi recapturado meses depois e, desde então, manteve uma rotina de fugas, punições disciplinares, e influência crescente, inclusive de dentro da cadeia. Em 2013 e 2014, foram encontrados celulares e chips atribuídos a ele dentro da penitenciária. Era uma liderança que não se apagava com grades.
Em 2014, quase perdeu a vida na prisão após uma tentativa de homicídio. Foi espancado por outros detentos. A justificativa? Sua posição de liderança.
Naquele mesmo ano, conseguiu um feito raro: converteu sua pena em prisão domiciliar. A justificativa jurídica foi um problema médico. Sua mão esquerda, atrofiada após um acidente de carro mal tratado, exigia uma cirurgia delicada.
O desembargador Aliomar Britto aceitou os argumentos da defesa com base no princípio da dignidade humana.Zé de Lessa foi solto. Não fez a cirurgia. Nunca mais voltou.
O advogado Paulo César Pires, que o defendeu, diz que nunca mais teve contato com o ex-cliente. “Tratando-se de assaltante, os médicos não fizeram um trabalho bom na mão dele. Aquilo impossibilitava de fazer algumas coisas básicas da vida.” A promessa era de fisioterapia diária, pinos importados de São Paulo, reabilitação, nada disso ocorreu.
O Ministério Público, cético desde o início, tentou impedir a saída. A juíza da 2ª Vara de Execuções Penais à época, Andremara dos Santos, negou o pedido de prisão domiciliar. Mas, cinco dias depois, o desembargador da instância superior decidiu pela soltura. Zé de Lessa sumiu no mundo.
Não havia tornozeleiras eletrônicas disponíveis na Bahia em 2014. O sistema, frágil e desarticulado, não pôde controlar um homem que planejava crimes enquanto se passava por doente.
Da clandestinidade, Zé de Lessa comandava ações de alto impacto. Seu nome apareceu por trás do assalto de R$ 100 milhões a uma agência bancária em Bacabal, no Maranhão, em 2018. Segundo a SSP-MA, ele orquestrava o crime do Paraguai. Quem executava era seu irmão, Edielson Francisco Lumes, o Dó, morto pela polícia após o roubo.
Outro nome de confiança era Franklin Costa Araújo, seu cunhado, apontado como o principal sequestrador da Bahia. Ex-segurança do Banco do Brasil, Franklin aprendeu a rotina bancária por dentro, e depois a explorou por fora, ao lado do cunhado foragido.
Enquanto isso, Zé de Lessa era a carta Ás de Ouro no Baralho do Crime da SSP-BA. O homem mais procurado da Bahia.
Em 4 de dezembro de 2019, o cerco se fechou.
Zé de Lessa estava escondido em uma fazenda entre Coronel Sapucaia e Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul, território de fronteira, trânsito livre de armas e drogas. Segundo a Polícia Militar, após uma tentativa de assalto a carro-forte na Rodovia MS-156, agentes localizaram o esconderijo. Houve troca de tiros. Lessa foi morto.
Assim morreu o homem que, por anos, confundiu a justiça com relatórios médicos, usou a própria fragilidade física como trunfo jurídico e transformou a calma do sertão em ponto de partida para um reinado de violência.
O legado de Zé de Lessa é uma lição sobre como o crime, quando se organiza, sabe ser paciente, educado e letal. BN

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